José Maria Filardo Bassalo
O objetivo deste artigo é o de relatar a odisseia que vivi, na década de 1970, na tentativa de aprimorar minha formação científica no exterior, para melhor servir à Universidade Federal do Pará, na qual trabalhei entre 16 de agosto de 1961 e 10 de setembro de 2005. Este artigo será completado com dois Apêndices. No Apêndice 1, explicarei alguns aspectos dessa odisseia, graças ao acesso de ter em mãos as cento e treze (113) páginas (muitas delas com assuntos repetidos) de minha ficha no SNI, disponibilizada pelo Arquivo Nacional, desde 2005, e cuja abertura pública decorreu da Comissão Nacional da Verdade (Lei 12.528/2011 e instituída em maio de 2012). O Apêndice 3 é um artigo no qual descrevo os Caminhos que trilhei em minha vida acadêmica.
Minha primeira tentativa de ir ao exterior ocorreu em 1972 quando, a convite do Prof. P. Barchewitz, do Laboratoire d’Infrarouge, Faculté de Sciences, em Orsay, Paris, pretendia desenvolver naquele laboratório francês um trabalho de pesquisa que serviria de subsídio para minha Tese (Dissertação) de Mestrado (T/DM) que estava desenvolvendo com o físico Mauro Sérgio Dorsa Cattani, professor da Universidade de São Paulo (USP) e que, naquela ocasião, se encontrava em Orsay, pesquisando na área de Forma de Linhas Espectrais, e assunto de minha T/DM. Infelizmente, a solicitação que fiz ao então Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq) sofreu os conhecidos trâmites burocientistocráticos e a mesma só foi concedida na época em que não poderia mais viajar para a França, de vez que meu orientador já não se encontrava mais nesse país. Em vista disso, o professor Cattani e eu decidimos que seria melhor concluir o Mestrado e também o Doutorado no Brasil, para depois fazer estudos de pós-doutorado na França. E isso foi feito, já que em 1973 e em 1975, respectivamente, recebi os títulos de Mestre e de Doutor em Física do Estado Sólido pela USP, ambos os títulos sob a orientação do Prof. Cattani.
Terminado o doutorado no Brasil, tentei fazer a Segunda viagem ao exterior para realizar em 1975, e ainda em Orsay, um estágio de pós-doutoramento. Desta vez a bolsa de estudos solicitada ao CNPq foi-me concedida em tempo hábil, no entanto, fui vítima de uma cassação branca por parte do SNI, já que não me foi concedida a licença por parte do Ministério da Educação (MEC) para viajar ao exterior. Naquela ocasião, não soube a razão dessa cassação. Parece que um dos argumentos utilizados pelo SNI (informação essa que obtive extra-oficialmente), foi o fato de eu haver morado no Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo (CRUSP), na ocasião em que esse conjunto foi invadido por forças militares (estaduais e federais), em 17 de dezembro de 1968, em consequência do Ato Institucional Número 5 (AI-5), editado no dia 13 desse mesmo mês. Eu, juntamente com 474 moradores daquele conjunto (ver Apêndice), fomos presos e recolhidos à Prisão Tiradentes em São Paulo. Outro argumento adicional também usado pelo SNI para essa cassação foi o de que eu dirigia uma célula comunista em Belém (ver Apêndice). É oportuno registrar que nunca respondi a nenhum Inquérito Policial Militar (IPM) sobre qualquer tipo de subversão ou mesmo de corrupção, por ocasião do Golpe Militar de 1964.
Em 1978, tentei pela terceira vez sair do Brasil, desta vez para atender a um convite do professor Henri van Regemorter, do Observatório de Paris, em Meudon, para fazer estágio de pós-doutoramento junto ao grupo de pesquisa desse professor francês, na área da linha de pesquisa que desenvolvia o professor Cattani, com a minha colaboração, e já referida anteriormente, qual seja, sobre Formas de Linhas Espectrais. (Aliás, é oportuno dizer que, em 2007, Cattani e eu escrevemos um livro sobre esse tema e que foi publicado pela EdUFA, e hoje se encontra no seguinte site: publica-sbi.if.usp.br/PDFs/pd1656010/pdf.). Apesar de haver também recebido uma bolsa de estudos do CNPq para realizar tal estágio e, também, de haver solicitado licença junto ao MEC para realizá-lo, novamente a “mão invisível’’ da repressão militar impediu-me de sair do Brasil, pois nunca recebi nenhuma resposta àquela solicitação. Informaram-me, extra-oficialmente, aliás, como era o mecanismo usado pela ditadura militar, que esse meu pedido havia chegado fora do prazo. Mais tarde, contudo, soube que o professor Regemorter era persona non grata às autoridades militares e civis brasileiras, já que o mesmo havia assinado um manifesto contra a presença dos Estados Unidos da América, no Vietnã.
Assim, impedido por “forças ocultas’’ de ir ao exterior, a fim de aprimorar minha formação científica, restou-me ficar no país e trabalhar. Foi o que fiz, pois ministrei aulas e pesquisei, quer na linha de pesquisa iniciada com minha T/DM e prosseguida em minha Tese de Doutorado e outros artigos (ver a relação deles no livro referido acima), quer numa nova linha de pesquisa que iniciei aqui mesmo, em Belém, relacionada à História da Física. Essas linhas possibilitaram-me a publicação de alguns trabalhos em revistas nacionais e internacionais, bem como a publicação de livros. Registre-se que, para a realização dessa tarefa acadêmica, contei com a colaboração do CNPq, quer através de auxílios-viagem realizados no Brasil, quer através de auxílios para a aquisição de material bibliográfico. (Ver a relação atual de meus trabalhos e de livros publicados, no site: bassalo.com.br.)
No entanto, foi no final do mandato do General-Presidente João Batista Figueiredo que, me parece, um novo tipo de cassação – a patrulhada –, começa a influir nos pedidos de bolsas que fiz ao CNPq, cassação essa que resultou de um comentário feito por mim a uma Comissão do CNPq vinda à UFPA, discutir a distribuição de bolsas e auxílios. Vejamos qual. Quando a comunidade de pesquisadores da UFPA cobrou dessa Comissão a razão pela qual recebia tão poucos auxílios do CNPq, o Presidente (por sinal, paraense) dessa Comissão respondeu: – É porque vocês não pedem. Aí, então, levantei-me e disse-lhe: – Isso não é verdade, pois já estamos cansados de preencher formulários de pedidos do CNPq. Além do mais, aduzi: – Não adianta nada essa vinda de vocês para cá, pois se trata, apenas, de um novo Baile da Ilha Fiscal, já que com a eleição indireta do Presidente Tancredo Neves, acabou-se a Aristocracia Ditatorial Brasileira. A partir de março de 1985, entraremos numa Nova República.
Nesse mesmo ano de 1985, tentei pela quarta vez realizar uma bolsa de estudos no exterior. O trabalho em História da Física que estava realizando, permitiu-me receber um convite do professor Jorge Barojas W., do Departamento de Física da Universidad Autónoma Metropolitana-Iztapalapa, no México, para trabalhar em educação e difusão da cultura científica e tecnológica. Assim, solicitei uma bolsa do CNPq que, contudo, me foi negada sob a alegação (extra-oficial) de que mudara de área de trabalho: de Física para História da Física. Ora, isso não é verdade, já que estudar a História da Física há necessidade de se estudar Física. Além do mais, continuava a trabalhar em Física, desta vez em outra linha de pesquisa, isto é, a da Teoria de Propagadores de Feynman para Sistemas Físicos Variáveis no Tempo, assunto, aliás, em que trabalho até o presente momento, com uma publicação em 2012 (Journal of Advanced Mathematics and Applications 1: 89-120).
Minha suspeita de que estava sofrendo uma cassação patrulhada foi fortalecida com o seguinte fato. Para atender ao convite do professor Harry Eugène Stanley a fim de participar do STAPHYS 16, que seria realizado em agosto de 1986, em Boston, Estados Unidos, preparei um trabalho naquela linha de pesquisa (posteriormente aceito para apresentar nesse Congresso) e solicitei, então, um auxílio-viagem ao CNPq para lá comparecer. No entanto, foi com surpresa que recebi essa solicitação de volta do CNPq por não atender a prazos, muito embora a data do ofício, no qual me foi comunicada essa devolução, haja sido de 07 de abril de 1986, quando o prazo para inscrição de eventos dessa natureza só se encerrava no dia 10 de abril. Revoltado com essa situação, então escrevi uma carta ao Presidente do CNPq, o que resultou, creio, na aceitação de meu pedido. Contudo, o Comitê Assessor de Física e Astronomia do CNPq o indeferiu. (Creio que, em meu entendimento, nos arquivos do CNPq consultado por esse Comitê, ainda existia a “mão invisível” do SNI. Aliás, hoje, essa “mão invisível” tornou-se visível: – Currículum na Plataforma Lattes (CL). Quem não o tem, não existe para qualquer órgão federal, estadual ou municipal que lide com pesquisa.)
Em 1991, tive mais uma confirmação desse tipo de cassação, quando fiz uma solicitação de bolsa de pós-doutoramento para o CNPq, com a qual pretendia estagiar na Europa, durante mais ou menos três meses. Nesse estágio, esperava trabalhar em Pisa, Itália, com o Professor Roberto Caffarelli, para desenvolver um artigo sobre o papel do físico italiano Guiseppe Paolo Stanislao Occhialini no desenvolvimento da Física Brasileira. Na França, pretendia discutir com o físico brasileiro Roberto Aureliano Salmeron a participação de físicos paraenses no Projeto Gamma-Brazil. Por fim, em Portugal, tencionava discutir com o grupo do professor Antonio Luciano Leite Videira o trabalho que desenvolvia (e ainda desenvolvo) sobre Propagadores de Feynman. Contudo, o Comitê de Física negou esse pedido alegando que o tempo solicitado para esse tipo de bolsa era inferior ao estipulado pela já referida burocientistrocracia do CNPq, que é o de seis meses. É oportuno esclarecer que, em off, soube que essa minha pretensão de realizar esse estágio de pós-doutoramento foi considerada como “turismo científico”, devido ao tempo curto que solicitei para realizá-lo. [Hoje, esse “turismo científico” (muitas vezes com período bem inferior aos seis meses que me exigiram) é muito comum para os que possuem CL.]
No Apêndice 1 a seguir, explicarei as razões de algumas acusações de que fui vítima, examinando principalmente dois relatórios os quais destacam essas acusações. Incluo também nesse Apêndice alguns documentos, e duas fotos, que as complementam.
APÊNDICE 1
Neste Apêndice serão reproduzidas algumas páginas de minha ficha no ex-SNI, com os comentários complementares de algumas delas, de acordo com os assuntos descritos nessa ficha, que são os seguintes: 1) Subversão no Meio Universitário; 2) José Maria Filardo Bassalo e Célia Coelho Bassalo Cogitados para Viagem ao Exterior; 3) José Seixas Lourenço; 4) José Seixas Lourenço; 5) Atividades do PC do B no Estado do Pará; Infiltração de Comunistas na UFPA; 6) I Seminário de Tecnologia na Amazônia, Belém, PA; 7) Situação na Área Educacional; 8) Procedimento do Governador Hélio Mota Gueiros.
Como os assuntos relacionados com os itens 1-5 referem-se à subversão comunista na UFPA, vou examinar apenas alguns textos que são bem significativos.
1. Subversão no Meio Universitário
Texto 1: “Relação de professores, lideres estudantis de vários estados do Brasil, que demonstraram sua marcante atuação contrária ao Governo Revolucionário, de 1964, e as Forças Armadas, alem de adotarem posição ideologica esquerdista, caracterizada pela subversão, agitação e terrorismo”.
Este documento, de 31 de outubro de 1973 (Operação Castanha), preparado pelo Ministério da Aeronáutica, Comando Geral de Apoio, COMZAE, é composto de oito itens, onde meu nome aparece como Físico, da UFPa e como “genro de INOCÊNCIO MACHADO COELHO, que foi Chefe de Gabinete, do então Reitor da UFPa, ALOISIO DA COSTA CHAVES”. Diz ainda esse documento que eu era bastante ligado a CARLOS ALBERTO DIAS, considerados como autores intelectuais do Grupo, embora não apareçam como tal. BASSALO, contando com a influência de MACHADO COELHO, junto ao então Reitor, conseguiu ajuda financeira do Conselho Nacional de Pesquisas, para a instalação do Pós-Graduação em BELÉM. Esse documento também diz que o Grupo está bastante infiltrado na UFPa, principalmente nos Departamentos de Ciências Exatas e Naturais, Geologia, Física e Matemática, já tendo inclusive se apoderado praticamente do Departamento de Geologia. Em seguida o documento fala sobre a tática do Grupo de alojar professores que “compactuam com as manobras” do Grupo e de demitir os que não se ajustarem a essa situação. Aí segue então uma relação de professores do Departamento de Geologia que foram demitidos (um pediu demissão e outro pediu licença) devido a esse processo. Como não participei dessa suposta “manobra” por ser do Departamento de Física, nada posso acrescentar.
2. José Maria Filardo Bassalo e Célia Coelho Bassalo Cogitados para Viagem ao Exterior
Texto 2: Antecedentes de JMFB, que, em 1968, constou de uma relação de estudantes detidos por ocasião da ocupação do CRUSP, em São Paulo SP. Em 1975, propagou ideias do Grupo de Geofísica da UFPA, integrado por elementos comunistas. Fichado como militante comunista, esteve preso e respondeu a IPM após a revolução de Mar 64; JMFB e esposa, CCB, foram cogitados para viagem ao exterior em 1978. Constam dados de qualificação.
Vejamos primeiro a minha detenção por ocasião da ocupação do CRUSP (Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo). Vou reproduzir a artigo que escrevi sobre essa prisão e que se encontra já referido no meu site.
“Quando o AI-5 foi editado, em uma sexta-feira, dia 13 de dezembro de 1968, em consequência de um discurso proferido pelo então deputado federal Márcio Moreira Alves, encontrava-me em São Paulo cursando o Mestrado em Física, no então Departamento de Física da Universidade de São Paulo (DF/USP). Como estava sem a minha família, morava no Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo (CRUSP), no Bloco F, apartamento 505, juntamente com o paraense (também estudante de Física) Marcelo Otávio Caminha Gomes e mais um engenheiro mecânico, Maurízio Ferrante.
Para festejar essa data, na madrugada do dia 14 de dezembro, o Comando de Caça aos Comunistas (CCC) metralhou o CRUSP, de um local perto do Instituto Butantã. Essa residência estudantil era composta de um conjunto de sete prédios (denominados de A, B, C, D, E, F, e G), com seis pavimentos e assentes sob pilotis (colunas), sendo 11 apartamentos por andar que davam para um corredor. Morávamos no F, conforme disse, destinado aos alunos que estavam fazendo pós-graduação na USP. Esses blocos tinham suas fachadas voltadas para o rio Pinheiros, e foram construídos de forma alternada, sendo o F o penúltimo prédio, próximo ao Restaurante Universitário, mais próximo do Instituto Butantã. Em vista da situação geográfica, o Bloco F foi metralhado pelo CCC. Felizmente não houve nenhum acidente, pois sabedores de uma possível represália por parte do CCC (que já havia destruído a peça de Chico Buarque, Roda Viva), nós dormíamos no chão dos quartos, sendo os colchões colocados nas paredes, para evitar balas. Mesmo assim, quase uma dessas balas mata um colega nosso, que morava no 507, já que se encontrava no sanitário, e sentiu um `vento mortífero’ passar a um palmo de sua cabeça. Não satisfeitos com essa atitude criminosa, o CCC voltou a metralhar o CRUSP, no domingo dia 15, à noite, desta vez pela parte da frente, atingindo o Bloco A, onde moravam apenas alunas. Novamente, por felicidade, não houve vítimas. Foi dessa maneira que uma parte ultra-reacionária da sociedade civil paulista festejou o AI-5. Porém, não ficou apenas nesse incidente a comemoração do Ato.
O poder político-militar instituído também fez sua celebração. Promoveu a invasão do CRUSP, na madrugada do dia 17 de dezembro, por tropas do II Exército e da Polícia Militar do Estado de São Paulo. Antes de prosseguir neste relato, quero responder a uma dúvida que certamente está passando na cabeça do leitor. Quase no final de dezembro, e depois de duas rajadas de metralhadora do CCC, porque continuei morando no CRUSP? Por que, em virtude do famoso “maio de1968”, que começou na França e teve repercussão em todo o mundo, houve greve e o ano letivo foi prolongado. Assim, tinha uma prova final da disciplina Relatividade Restrita, com o professor Jayme Tiomno e seu assistente, o professor Mauro Sérgio Dorsa Cattani, no dia 16 de dezembro, véspera da referida invasão. Pois bem, essa prova foi realizada à tarde. Assim, voltando para o nosso apartamento, depois do jantar, comecei a preparar os relatórios à então Coordenação do Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior(CAPES) e à Universidade Federal do Pará (UFPA), já que pretendia viajar para Belém, via Rio de Janeiro, no dia 21 de dezembro. Quando terminei de preparar os relatórios, cerca de duas horas da manhã do dia 17, fui à janela do apartamento para respirar aliviado e me deitar. No entanto, na janela, notei que o silêncio da madrugada tépida que cobria o CRUSP, estava sendo perturbado por um ruído estranho, como se um furtivo comboio de carros tivesse entrando no campus da USP. Como era de madrugada, tive de aguçar a visão para ver que tipo de barulho era aquele. Qual a minha surpresa quando percebi que se tratavam de tanques do Exército, cerca de 17 unidades, conforme verificamos mais tarde. Imediatamente acordei o Marcelo e o Maurízio, para ver o que estava acontecendo. De pronto, subi ao apartamento 611, para falar com o cearense Newton Theophilo de Oliveira, meu grande amigo e colega de estudos. Juntos, e apavorados, ficamos esperando o que iria acontecer.
Cerca de seis horas da manhã, o comandante da operação-invasão, um oficial-general do Exército, vestido com uniforme de campanha, ordenava aos cruspianos, através de um megafone, que descessem dos apartamentos, apenas com a roupa que estivessem usando. Desse modo, ficamos horas sob os pilotis do prédio, aguardando que fosse feita a revista-cívica no CRUSP. Ela foi feita, prédio por prédio, andar por andar, apartamento por apartamento, por um sargento e um oficial, ambos do Exército. Sobre essa revista, há fatos curiosos a registrar. Por exemplo: na época, a Revista Realidade havia feito uma matéria com o grande líder comunista brasileiro Luís Carlos Prestes, cuja fotografia havia sido capa dessa Revista. Pois bem, logo que o oficial entrava em cada apartamento, junto à porta de cada apartamento, essa Revista era automaticamente confiscada, e entregue ao sargento que a colocava no corredor, junto à porta de cada apartamento, como uma prova de suposto crime de lesa-pátria. Além do mais, de acordo com o critério do oficial-censor, haveria um novo confisco de supostas outras provas. Em nosso apartamento, na sala de estudos, eu possuía uma pequena biblioteca. Nesta, lembro-me bem, tinha a coleção The Feynman Lectures on Physics, composta de três volumes, editada pela Addison Wesley Corporation, dos Estados Unidos, e de cor vermelha. Além dela possuía, também, uma coleção de Física Teórica, do Landau e Lifchtiz, composta de seis volumes, editados em Moscou, de sobrecapa vermelha, porém, com o dorso preto. Pois bem, o oficial, ao ver os livros, comentou: – É, parece que aqui se estuda. Eu repliquei: Sim, porque todos somos professores. No entanto, apesar desse pequeno diálogo, ele viu os livros do Feynman, pediu-me que os tirasse da estante, e devido a sua cor vermelha, indagou-me sobre a sua `periculosidade’. Quando disse ao capitão que era um livro americano, respirou aliviado. Por felicidade minha, e por ignorância (em assuntos de Física) do censor, ele passou pela coleção do Landau-Lifchtiz, e não disse nada. O dorso preto do livro evitou que eu fosse considerado `agente do ouro de Moscou’.
Ainda com relação a essa revista-humilhação, há mais alguns fatos curiosos a registrar. Terminada a mesma, o suposto material subversivo era anotado e levado para o hall de entrada de cada prédio. No monte de meu prédio, vi o livro O Vermelho e o Negro, do escritor francês Stendhal (escrito em 1830, e versando sobre a queda do Imperador Napoleão e a restauração dos Bourbons), confiscado como um livro subversivo. Vi, também, o sargento-relator ficar abismado com o monte do famoso poster do Che Guevara, com o boné e a estrela solitária, poster que ele havia recolhido de cada apartamento. Recordo-me de sua frase: – Vocês gostam `paca’ deste um.
Concluída a famigerada revista-moralista (meses depois, houve uma exposição na Avenida Paulista sobre o que haviam encontrado no CRUSP, com ênfase para os preservativos recolhidos, e um relógio-despertador considerado como uma bomba-relógio) em todo o CRUSP, por volta de três horas da tarde, ficamos presos sob os pilotis de cada prédio, rodeados por policiais-militares que usavam cães amestrados para nos manter em forma, além de simular fuzilamento, toda a vez que o grupo cantava o hino da Internacional Socialista.
Não conformados com a humilhação de sermos revistados, com fome, com apenas a roupa do corpo, e sem saber o nosso destino, os invasores resolveram nos humilhar mais ainda. Depois de requisitarem ônibus da então Companhia Metropolitana de Transportes Coletivos (CMTC), que faziam linha para o campus da USP, fomos levados para a Prisão Tiradentes. Chegando nessa prisão, fomos saudados pelas prostitutas paulistas que foram soltas, a fim de que houvesse lugares para colocar as cruspianas. Estas se revoltaram e disseram que não entrariam nas celas. Depois de algum tempo de negociação, foram soltas. Porém, nós, os cruspianos, ficamos presos. Como éramos cerca de 500, foi feita uma relação de todos. Cada um de nós dava nome e endereço e depois, subia para as celas. Contudo, eu, Marcelo Gomes, Jayme Warzawski e mais alguns pós-graduandos, deixamos para dar nossos nomes, apenas no final. Depois de fichados (sem, contudo, sermos fotografados e nem registradas nossas impressões digitais), cerca de dez horas da noite, quando íamos subir para a cela, veio um delegado, com uma lista na mão, e começou a ler alguns nomes, que seriam soltos. Que alívio, quando ouvi meu nome, assim como o do Marcelo e do Jayme, dentre outros. Essa ordem de soltura decorreu do fato de que o professor Tiomno foi ao então Reitor da USP, professor Hélio Lourenço de Oliveira, dizer-lhe que esse precisava fazer alguma coisa, pois haviam sido presos alunos de pós-graduação, que, contudo, eram professores de outras universidades, como, por exemplo, o meu caso. Então, esse professor foi ao comandante do II Exército com uma lista de pós-graduandos, que moravam no CRUSP. Desse modo, fomos soltos.
Apesar de soltos (eu, Marcelo e Jayme), restava uma questão. Para onde ir, cerca de onze horas da noite, já que não podíamos voltar para o CRUSP que estava ocupado militarmente? Pegamos um táxi e fomos para a casa do professor Tiomno, que morava na rua Maria Figueiredo, no Bairro do Paraíso. Em lá chegando, cerca de meia-noite, cansados, sujos e famintos, a professora Elisa Frota pessoa, esposa do professor Tiomno, tratou-nos como uma verdadeira mãe. Enquanto tomávamos banho, ela preparou um excelente jantar, com frango e macarrão, um bom vinho e uma sobremesa de pêssegos em calda. Dormimos com pijamas do professor Tiomno.
No dia seguinte, fui com esse professor ao meu apartamento no CRUSP para pegar as minhas coisas pessoais. Acompanhados de um oficial do Exército, ele só me deixou apanhar as minhas roupas, ficando lá todos os meus livros. Mais tarde, um amigo meu, o matemático paraense José Miguel Martins Veloso, atualmente professor da UFPA, retirou o que restou de meus livros e os guardou consigo.
Nessa altura, cremos ser necessário dar uma explicação da razão pela qual o CRUSP foi metralhado pelo CCC, bem como foi invadido pelos militares. O CRUSP era considerado um território livre para os que queriam lutar contra o regime de exceção que havia se implantado no Brasil, a partir de 1964. Desse modo, para lá iam se homiziar os líderes estudantis brasileiros, tais como Wladimir Palmeira, Luiz Travassos (este, morto posteriormente em circunstâncias estranhas no Rio de Janeiro, vítima de um atropelamento), presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), e José Dirceu, líder dos estudantes secundários paulistas. Assim, em agosto de 1968, o CRUSP recebeu a visita de uma viatura (camburão) do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), cerca de seis horas da manhã. Um delegado se apresentou para prender alguns daqueles líderes. Então, os cruspianos prenderam-no no bloco G, e começaram a interrogá-lo. A viatura foi queimada em frente ao Restaurante Universitário. Como o delegado não voltou ao DOPS, e a viatura também, o DOPS foi avisado, certamente pelo motorista do camburão. Assim, por volta das sete horas da noite desse dia de agosto, o DOPS mandou um pelotão de policiais para libertar o delegado na `marra´. Lembro-me de que um cinegrafista de TV teve seu instrumento de trabalho quebrado por um violento golpe de coronha de fuzil.
Outro fato que fez do CRUSP um objeto de repressão, foi o de que por ocasião do célebre XXX Congresso da UNE, em Ibiúna, em outubro de 1968, alguns participantes desse Congresso estiveram hospedados nesse conjunto residencial. Quando tal Congresso foi descoberto pelas forças militares de repressão, os jornais paulistas mostravam fotografias do evento, e nelas era fácil identificar os mantos de dormir que usávamos no CRUSP. Além do mais, houve a célebre refrega entre o CCC, que se encontrava na Universidade Mackenzie, situada na Rua Maria Antônia, e os alunos de Filosofia da USP, que ficava também nessa rua, da qual resultou na morte do estudante secundarista José Guimarães”.
Com relação à viagem que Célia e eu faríamos ao Exterior, em 1975, o texto reproduzido fala por si mesmo.
3) José Seixas Lourenço; 4) José Seixas Lourenço; 5) Atividades do PC do B no Estado do Pará; Infiltração de Comunistas na UFPA.
Como esses textos tratam do mesmo assunto – a minha ação subversiva na UFPA -, vou comentar dois textos que, no meu entendimento, resumem a minha ficha do ex-SNI e foram responsáveis pelo impedimento de minhas viagens ao exterior.
O primeiro deles trata de um documento preparado pelo Centro de Ciências Exatas e Naturais da UFPA, em 29 de abril de 1974 (ver anexo), e um segundo preparado pelo Serviço Nacional de Informações, Agência de Belém (AESI), em 28 de outubro de 1975 (ver anexo).
COMENTÁRIO DO DOCUMENTO DE 1974
Ao Grupo de Geofísica, cuja pior figura é o prof. Antonio Gomes de Oliveira, não podiam deixar de juntar-se aqueles que já haviam posto as unhas de fora, anos antes, em março de 1964, quando num movimento paredista então em voga, conseguiram pressionar o Reitor na substituição (…) , José Maria Filardo Bassalo e Mario Tasso Ribeiro Serra, orgulhosos de suas posições “de esquerda”, comandaram todo o movimento, o que poderá ser testemunhado pelo Dr. José da Silveira Neto, naquela ocasião Magnífico Reitor da nossa Universidade
Vamos explicar esse incidente. Antes, justifico que o lapso (…) é para não identificar diretamente o então Coordenador do extinto Núcleo de Física e Matemática (NFM) da UFPA, situado em uma residência na então Avenida Independência, defronte da então Residência Governamental. Esse incidente aconteceu pelo seguinte fato. Nós dávamos aulas nessa residência sem nenhuma condição de espaço, já que algumas das aulas eram ministradas no corredor (defronte o sanitário) e que prosseguia até a cozinha dessa residência. Além do mais, dávamos aulas como Instrutores de Ensino, mas não recebíamos o devido crédito, que ficava para os então Professores Catedráticos. Pois bem, um grupo de professores, dentre eles, o Mário e eu, fomos até o Coordenador e solicitamos providências para sanar essas irregularidades. Como era uma época bastante tumultuada do Governo João Goulart, o nosso diálogo não foi pacífico. A certa altura, o Coordenador se declarou fascista e o Mário, então se declarou comunista. Quando solicitado pelo Coordenador que o Mário assinasse essa declaração, oferecendo-lhe uma folha de papel e uma caneta, o Mário prontamente pegou o papel e, quando ia assinar, foi retirado do local por um professor, dizendo-lhe que não “entregasse o pescoço para a degola”. Esse incidente teve prosseguimento com uma reunião que aconteceu entre os professores do NFM e o Coordenador, na presença do Reitor Silveira. Como o clima era insustentável, com acusações de ambas as partes (eu cheguei a discutir com o Dr. Silveira sobre a sua maneira de conduzir com “mão de perseguidor” a Reitoria, em virtude de um caso que aconteceu com o Professor Rui Britto, na então Escola de Engenharia do Pará e, que, no momento, não cabe registrar), o Dr. Silveira decidiu então substituir o Coordenador. Creio que cabe, neste momento, fazer o registro de que, com o novo Coordenador, foi construído, no quintal da residência do NFM, um barracão com salas de aulas, sendo a sua construção administrada pelo professor Raymundo Gonçalves Bastos e por mim, já que éramos engenheiros civis atuantes.
Vejamos outro trecho desse documento. Na primeira semana de agosto de 1972, durante a matrícula do segundo período, o prof. José Maria Filardo Bassalo chegou a tentar agredir fisicamente o Vice-Diretor do Centro. Este fato, por si só de extrema gravidade, foi testemunhado pelo próprio prof. Mario Tasso Ribeiro Serra, pelo aluno Eduardo Marechal Tagliarini, pelo oficial da Aeronáutica José Ananias Fernandes, atualmente Auxiliar de Ensino do Departamento de Física, e pode ser ainda inteiramente confirmado pelo prof. Dr. Angenor Porto Penna de Carvalho, naquela ocasião ocupando a Reitoria da Universidade, José Maria Filardo Bassalo, acovardado (destaque meu), procurou o dr. Angenor, diante do qual, chorando (destaque meu), disse que ia pedir demissão da Universidade, reconhecendo que seu gesto terminaria por excluí-lo da mesma. Tanto mais que José Maria Filardo já era reincidente do antigo Núcleo de Física e Matemática foi certa vez transferido por castigo (destaque meu), para o Curso de Arquitetura, fato que pode ser confirmado não só pelo Coordenador do Núcleo naquela ocasião, prof. Fernando Medeiros Vieira, como pelo Magnífico Reitor Dr. Silveira e pelo Dr. Otavio Cascaes, que dirigia o extinto DEE.
Vamos a explicação desse longo parágrafo. Vou começar pelo castigo, pois ele está diretamente relacionado à tentativa de agressão ao Vice-Diretor do Centro de Ciências Exatas e Naturais (CCEN), prof. Luciano Santos de Oliveira, por mim praticada, segundo o texto. Registro a primeira delas, no dia 01 de março de 1966, pois me lembro bem. Quando o prof. Luciano era Chefe do Departamento de Física, chamou-me dizendo que eu iria ministrar a Disciplina de Mecânica Clássica, porém não teria os créditos, como acontecia no passado, como registramos acima. Aí, então, como o meu temperamento é reativo-agressivo, o abotoei, na frente do prof. Ananias, dizendo-lhe: – Não dou mais aula para mais ninguém. Se ele quiser construir o seu currículo, que vá dar aula. E mais: você me respeita como professor ou como macho. No dia seguinte, recebi a Portaria (ver no anexo) do Reitor Prof. Silveira, lotando-me no Curso de Arquitetura, “até ulterior deliberação”. A segunda “tentativa de agressão” não ficou registrada diretamente no meu inconsciente. Certamente aconteceu, em virtude do fato de que me recordo muito bem. Certo dia, o Mário (não me lembro se foi juntamente com o saudoso amigo prof. Rui dos Santos Barbosa) me pediu para eu ir até a residência do professor Luciano – parece que na então rua Bailique, no Bairro da Campina – para pedir desculpas a ele. Fomos até lá e pedi desculpas ao Luciano [como o tratava, pois antes de sermos da UFPA, nos encontrávamos em jogos de celotex (jogo de botão) e fizemos uma amizade] pela então “tentativa de agressão”. Esse meu pedido de desculpas foi tão agressivo que, quando Mário e eu saímos da casa do agredido, o Mário me disse mais ou menos isso: – Porra Bassalo, essa tua desculpa foi mais uma agressão. Creio que o leitor merece uma explicação sobre essas “tentativas de agressões” ao Luciano. Logo que o grupo de Geofísica foi criado pelo Reitor Aloysio Chaves, em 1972, houve um boicote violento contra a sua implantação, boicote esse que tinha o apoio da Direção e Vice-Direção do CCEN. Esse boicote resultou na demissão de um professor da Geologia e que já foi por mim narrado quando escrevi um texto sobre o Dr. Aloysio, quando ele faleceu, em novembro de 1994, e se encontra em meu site.
Expliquemos agora o acovardado e chorando, relacionados com o Dr. Angenor, com quem tive dois episódios que os contarei a seguir. O primeiro deles aconteceu em novembro de 1958, quando era seu aluno na disciplina Portos de Mar, Rios e Canais. Na hora em que eu entreguei a minha prova para ele, ele me disse, em resumo, o seguinte: – Bassalo, eu gosto de você porque, além de ser bom aluno, pertence a uma família importante de Belém e, por isso, quero lhe fazer um convite para estagiar em meu Escritório de Engenharia. Então, lhe respondi: – Primeiro, eu não pertenço a essa família ilustre (ele se referia à família do dentista Pedro Bassalho, muito famoso em Belém e que, por sinal, era também dentista de nossa família), pois sou filho de pai sapateiro e de mãe lavadeira; segundo, o senhor tem por hábito não remunerar seus estagiários, pois estes, segundo o senhor mesmo afirma, deveriam ainda pagar, por estarem trabalhando no melhor Escritório de Engenharia de Belém (o que era verdade). Obrigado pela oferta, mas não quero ser explorado e vou tentar fazer a minha carreira isoladamente. O segundo episódio aconteceu quando o Dr, Angenor foi Reitor-substituto, creio que em 1970, em virtude do impedimento do Dr. Aloysio. Ele me chamou e pediu para que eu fosse a Brasília tratar de alguma coisa relacionada com o Laboratório de Física da UFPA. Disse-lhe que não podia aceitar esse convite, pois não entendia nada de Laboratório. Ele então me disse: – Se eu lhe pedir como seu amigo, você vai?. Respondi-lhe: – Vou, em nome dessa nossa amizade, mas não precisa que a Universidade me pague nada, pois estou indo ao Rio de Janeiro para um Congresso de Física, com tudo pago, e eu apenas vou voltar por Brasília para fazer o que o senhor está me pedindo. Lembro-me de que, ao voltar, escrevi um pequeno artigo, uma espécie de relatório, sobre o que vi no Laboratório de Física da Universidade de Brasília.
Não sei se os fatos que descrevi acima podem ser enquadrados como covardia. Sobre meu choro na frente do Dr. Angenor, não me lembro de haver acontecido, pois não tenho nenhuma recordação dele como fato marcante de minha vida, o que deveria ter acontecido, pois segundo o poeta russo Mayakovsky (Vladimir Vladimirovich), você só se recorda das coisas ruins que lhe acontecem. Assim, o único choro que marcou a minha vida foi quando recebi o resultado da nota três (3) que tirei na primeira prova de Mecânica Quântica que fiz com o prof. Jorge André Swieca, quando realizava o Mestrado em Física, no então Departamento de Física da USP, em 1968. Depois de receber esse resultado, fui para um canto isolado de uma praça interna do complexo de prédios desse Departamento, sentei em uma calçada e comecei a chorar. Eu havia largado a minha profissão de engenheiro, deixado minha família [minha mulher Célia, e meus filhos Jô (José Maria Coelho Bassalo) e Ádria (hoje, Bassalo Aflalo)] em Belém do Pará, para ser físico e tinha me saído mal em uma disciplina fundamental na Física. No Apêndice 2, relato a minha performance nesse Mestrado.
Vejamos agora outro parágrafo do documento em questão, e ainda na página 65. No caso da agressão ao prof. Luciano, o Dr. Angenor Porto Penna de Carvalho como Reitor que era na ocasião e como pessoa muito amiga, mandou chamar o Diretor e apelou para que não se levasse avante qualquer representação, o que terminou sendo feito. O pedido de desculpas de José Maria Filardo Bassalo ao prof. Luciano, testemunhado por outros professores seus amigos, dentre os quais Mario Tasso Ribeiro Serra e Rui dos Santos Barbosa, acrescentou que quem ele queria atingir era outra pessoa (pressume-se que fosse o Diretor), e que Luciano era apenas um “para-choque”.
O comentário que faço sobre esse parágrafo é o de que o Dr. Angenor agiu dessa maneira, mandando cancelar a representação contra mim, devido a amizade que ele tinha por mim, apesar da “grosseria” que fiz a ele, em 1958, registrada acima; tal amizade devia-se ao fato de ele haver me escolhido para dar aulas particulares de Física para o seu filho mais velho, o Luís Alberto, por ocasião em que se preparava para fazer o Vestibular para a Escola de Engenharia do Pará.
Por fim, com relação ao documento que estamos analisando (do qual apaguei o autor), vou destacar seu último parágrafo, que não preciso comentar, pois ele é bem elucidativo para a minha ficha no ex-SNI. Assim, lê-se: – Solicitamos, pois, que a Reitoria nomeie uma Comissão de Inquérito formada de elementos estranhos ao Centro, se possível com representantes da AESI a fim de que sejam todos esses fatos apurados na forma prevista em Lei, para que, com a punição dos subversivos da ordem possamos trabalhar em paz. De outra forma, Magnífico Reitor, só nos restará o caminho da renúncia ao mandato que tanto nos honra.
COMENTÁRIO DO DOCUMENTO DE 1975
Desse documento só comentarei o que se relaciona com a minha pessoa.
ASSUNTO: ATIVIDADES SUBVERSIVAS DO PC DO B NO PARÀ
DATA: 28 DE OUTUBRO DE 1975
DIFUSÃO: C I Ex
ANEXOS: (A, B, C, …, N)
REFERÊNCIA: OPERAÇÃO TATU
4. OUTROS DADOS
JOSÉ MARIA FILARDO BASSALO
– Propagandista da vinda do grupo de geofísica, sobre o qual assim se referiu: “O ROLO COMPRESSOR VEM AÍ”.
– Agrediu fisicamente o Vice Reitor (sic!) do Centro de Ciências Exatas e Naturais, Professor LUCIANO SANTOS, existindo registro na UFPA sobre o fato.
– Genro de INOCÊNCIO MACHADO COELHO, esteve ligado à atividades subversivas no campo estudantil.
– Como Assessor do General MARIO DE BARROS CAVALCANTE, na RODOBRAS Belém/PA, esteve envolvido em malversação de dinheiro público.
– Conhecido por atividades de agitação na área de Belém-Pa.
– Fichado como militante comunista.
– Após a revolução de 1964, esteve preso e respondeu IPM.
– Citado em relatório sobre a criação da AP no Pará, como um de seus membros.
– Envolvido em 1968 em movimento de agitação no CRUSP.
Antes de comentar esses itens (excluído o último), é oportuno registrar que os mesmos foram apresentados em um documento do MINISTÉRIO DO EXÉRCITO, CMA – 8ª. R. M., de 20 de junho de 1978, ASSUNTO: PROFESSOR JOSÉ MARIA FILARDO BASSALO.
Vamos aos comentários.
– O primeiro item é VERDADEIRO.
– O segundo já foi comentado anteriormente.
– O terceiro é parcialmente verdadeiro. Na época era sim genro de INOCÊNCIO MACHADO COELHO (e fui até seu falecimento em 2001), o que muito me orgulhava, pois ele era um dos maiores intelectuais que o Pará tinha e que, nas reuniões noturnas diárias que patrocinava em sua residência – a famosa Varanda do Machado Coelho – da qual participavam vários intelectuais paraenses, além de intelectuais de outros estados brasileiros e até do exterior (ver a relação deles em artigo que escrevi sobre o Professor Rui Britto, e que se encontra em meu site), NUNCA permitiu que a discussão sobre os mais diversos ramos do conhecimento que lá acontecia, regada sempre com um gostoso café que Célia e minha cunhada Marcionila (hoje Coelho Lopes) se revezavam na preparação, fosse maculada por alguma interpretação ideológica não ontológica. O complemento desse item é FALSO, pois nunca estive envolvido politicamente em atividades estudantis (no Anexo 2, esclareço esse tema).
– O quarto é FALSO, pois nunca trabalhei com esse General e, diga-se de passagem, com nenhum militar, embora tenha tido oportunidade de trabalhar, porém, esse fato está fora do contexto deste artigo. (O leitor encontrará as razões em meu site).
– O quinto é ambíguo. Se as atividades forem políticas, ele é FALSO. Se elas se referirem à formação de um grupo de paraenses altamente qualificados em Física e Geologia, é VERDADEIRO (ver anexo 2).
– O sexto é FALSO, pois tanto em Belém quanto em São Paulo, nunca militei no Partido Comunista Brasileiro, o lendário PECEBÃO.
– O sétimo é FALSO, pois nunca fui preso em Belém e nunca respondi a nenhum IPM (Inquérito Policial Militar).
– O oitavo é FALSO, pois nunca pertenci à AP (Ação Popular), nem como membro e nem como co-adjuvante.
– O nono é FALSO, pois a agitação foi promovida pela ação Militar que invadiu o CRUSP, e não pelos cruspianos, conforme já comentei.
Creio ser oportuno destacar dois parágrafos do documento em consideração, com a omissão do nome de uma pessoa, bem como o do autor do documento, na reprodução anexada.
O grupo atuante na UFPA, é constituído, sem dúvida, de elementos de elevado grau de inteligência, dotados de alto poder de análise e com certeza cientes de como atuam os órgãos de informações, dados nos chequeiros e contra-chequeiros realizados diariamente que são apenas do conhecimento e uso da subversão.
Torna-se necessário portanto antes de uma segunda fase de operações realizar outra de caráter mais delicado, exigindo o emprego de pessoal altamente especializado, de equipamento eletrônico sofisticado, da infiltração (destaque meu) e do emprego de métodos de entrada para descoberta de documentação, captação de diálogos que venham a comprometer definitivamente todo o grupo que se instalou na UFPA, conforme solicitado no relatorio Operação Tatu de 12 de setembro de 1975 e a presença de (…) em Belém/Pa.
Sobre o destaque, é importante registrar fatos sobre a infiltração de agentes militares de informação antes mesmo da Revolução de 1964, como foi definida pelas Forças Armadas. Em 1963, eu ensinava a disciplina Eletricidade e Magnetismo para o Curso de Bacharelado em Matemática. Certo dia apareceu um aluno, um Capitão do Exército, para assistir a essa aula, pois ele se dizia matriculado nesse Curso. Ele, no entanto, desapareceu de Belém, e não completou essa graduação. De outra feita, no início do segundo semestre de 1975, eu ministrava a disciplina Desenvolvimento da Física para o Curso de Licenciatura em Física quando um aluno pediu para entrar em sala. Como o nome dele não constava na lista de frequência, pedi-lhe que passasse no Departamento para regularizar essa situação. Ele então (em linhas gerais) me respondeu: – Professor, eu não sou aluno da UFPA. Estava passando por aqui, parei, gostei de sua aula e pergunto se posso continuar assistindo suas aulas, bem como receber as “Notas de Aula” (base de minhas futuras Crônicas da Física) que o senhor distribui aos alunos. Claro que sim lhe respondi. Numa das últimas aulas, já no final do semestre, quando me dirigia ao meu carro para ir embora, ele se aproximou de mim e perguntou-me se poderia receber uma carona. Como disse que sim, ele então entrou no carro. No decorrer do trajeto, ele me informou que era da Aeronáutica, que já havia passado pela Universidade de Campinas (UNICAMP) e que, agora, estava em serviço na UFPA. Compreendi, então, que seu serviço militar era de espionar os “subversivos” da UFPA e que, suponho, teria me escolhido por ser eu o chefe da “célula do PC do B na UFPA”.
É oportuno registrar um fato trágico que aconteceu em uma das salas de aula (Fb-02) do Campus Básico da UFPA, no Guamá, em consequência dessas infiltrações. Na segunda-feira de manhã do dia 10 de março de 1980, o estudante de Engenharia Elétrica, César Moraes Leite, morreu em decorrência de um tiro de revólver que estava
na pasta de um “aluno” (Agente da Polícia Federal), arma que havia caído no chão. (http://sejarealistapecaoimpossivel.blogspot.com.br/2008_01_01_archive.html).
Continuemos com os comentários sobre a minha ficha no ex-SNI.
6. I Seminário de Tecnologia na Amazônia, Belém, PA
Texto 6: Promovido pelo DCE UFPA, realizou-se em Belém PA, nos dias 16, 17, 18 e 21 Nov 83, o I Seminário de Tecnologia na Amazônia. O acontecimento não despertou no seio da classe estudantil, principalmente o Universitário, o interesse que era esperado por seus organizadores. Oradores presentes e tópicos dos discursos feitos no decorrer do evento.
COMENTÁRIO DO DOCUMENTO DE 1983
Desse documento só comentarei o que se relaciona com a minha pessoa.
SERVIÇO NACIONAL DE INFORMAÇÕES – AGÊNCIA DE BELÉM
DATA: 15 DEZ 83
ASSUNTO: I SEMINÁRIO DE TECNOLOGIA NA AMAZÔNIA BELÉM/PA
ORIGEM: ABE/SNI (PRG. N0. 004879/83)
DIFUSÃO: AC/SNI
1. Promovido pelo DIRETÓRIO CENTRAL DOS ESTUDANTES DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (DCE/UFPa), realizou-se em Belém/PA, nos dias 16, 17, 18 e 21 NOV 83, tendo como local o “campus” daquela entidade de ensino superior, o I SEMINÁRIO DE TECNOLOGIA DA AMAZÔNIA, ao qual estavam agendadas as presenças de conferencistas JOSÉ MARIA FILARDO BASSALO, professor de Física da UFPa; JEAN HEBETE, ex-padre e pesquisador do NÚCLEO DE ALTOS ESTUDOS DA AMAZÔNIA (NAEA) e ALEX FIÚZA DE MELO. No entanto, por motivos desconhecidos, somente o primeiro compareceu.
2. No primeiro dia (16 NOV), foi realizado a sessão inaugural, nas dependências do auditório setorial profissional da UFPa, onde se encontravam cerca de 60 (sessenta) pessoas, em sua maioria universitárias.
JOSÉ BASSALO, fazendo o pronunciamento de abertura, criticou, demoradamente, o Programa Nuclear Brasileiro, o projeto da Hidroelétrica da ITAIPÚ BINACIONAL e a empresa PETRÓLEO BRASILEIRO S/A (PETROBRÁS). Disse que, em 1964, cientistas brasileiros, de renome internacional, foram expulsos do País ou emigraram por causa de divergências políticas.
Aparteando, fez uso da palavra, RÔMULO PAES DE SOUZA, presidente do DCE/UFPa, que denunciou a produção de drogas em laboratórios de empresas multinacionais, para serem usadas em larga escala no País, a título de experiência, sendo o povo brasileiro utilizado como cobaia.
JOSÉ BASSALO, voltando a falar, disse não haver interesse por parte do Governo Federal, no desenvolvimento de programas científicos com tecnologia nacional, pois, tal fato, tiraria das multinacionais a continuidade da exploração, acarretando o fim das comissões dos tecnocratas brasileiros, depositadas em contas correntes em bancos da SUÍÇA.
Encerrando, manifestou a opinião de que uma revolução, neste momento, seria indispensável, o que não seria tudo, ante a necessidade de revoluções, também, nos campos industrial, social e político. E prosseguiu: “é uma pena não termos uma ILHA MALVINA no BRASIL, pois, assim, teríamos eleições diretas para a Presidência da República.
Infelizmente não me lembro dessa minha participação. Contudo, CERTAMENTE ela é VERDADEIRA, pois era isso que o povo brasileiro pensava e desejava, tanto que a campanha das DIRETAS JÁ, já havia sido iniciada no recém emancipado município de Abreu e Lima, em Pernambuco, no dia 31 de março de 1983, organizada por membros do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), dando forma ao pronunciamento do saudoso senador Teotônio Vilela, no Programa Canal Livre da Rede Bandeirantes, de outubro de 1982. (Fonte: Google). ..
Vejamos agora o penúltimo assunto de minha ficha no ex-SNI.
7. Situação na Área Educacional
SERVIÇO NACIONAL DE INFORMAÇÕES – AGÊNCIA DE BELÉM
DATA: 05 JUN 84
ASSUNTO: SITUAÇÃO NA ÁREA EDUCACIONAL – 4.5
REFERÊNCIA: a) PNI – Período até 28 Mai 84
b) INFÃO N0 1061/19/ABE/83
ORIGEM: ABE/SNI (PRG. N0. 005306/84)
DIFUSÃO: AC/SNI
1. ATIVIDADES ESTUDANTIS. ATUAÇÃO DOS DIRETÓRIOS ESTUDANTIS. LEGISLAÇÃO QUE REGULA E DISCIPLINA OS ORGÃOS DE REPRESENTAÇÃO. TENDÊNCIAS POLÍTICAS, REIVINDICAÇÔES E SUA LEGITIMIDADE. ITERESSES DA CLASSE ESTUDANTIL – 4.5.1
a. No Estado do Pará
– No período de 16 a 21 de NOV 83, promovido pelo DIRETÓRIO CENTRAL DOS ESTUDANTES DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (DCE/UFPA), tendo à frente seu presidente, RÔMULO PAES DE SOUZA, MILITANTE DO PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL (PC do B), realizou-se nas dependências do “campus” daquela entidade de ensino superior, o “I SEMINÁRIO DE TECNOLOGIA DA AMAZÔNIA” ao qual estavam previstas as presenças dos conferencistas JOSÉ MARIA FILARDO BASSALO, professor de Física da UFPa; JEAN HEBETE, ex-padre e pesquisador do NÚCLEO DE ALTOS ESTUDOS DA AMAZÔNIA (NAEA) e ALEX FIÚZA DE MELO. Todavia, por motivos desconhecidos, somente o primeiro compareceu (Ver INFÃO n0. 1088/19/ABE/83).
Nos dias em que perdurou o “Seminário” as tônicas dos assuntos ali tratados, cingiram-se à críticas aos vários projetos implantados e em implantação no País, tais como: Programa Nuclear Brasileiro e Projeto da Hidrelétrica de ITAIPÚ/BINACIONAL, represamento das águas do Rio Tocantins pela barragem da Hidrelétrica de TUCURUÍ, “além da utilização de drogas produzidas em laboratórios de empresas multinacionais e usadas em larga escala no País.
Sobre esse documento, ver o comentário anterior.
Encerrando este artigo, comentarei o último texto de minha ficha do ex-SNI.
8. Procedimento do Governador Hélio Mota Gueiros
Esse assunto refere-se ao voto de protesto que propus, no dia 08 de abril de 1988, em uma reunião do Conselho de Ensino Superior de Pesquisa (CONSEP) da UFPA, sobre a posição do Governador Hélio da Mota Gueiros contra uma greve justa de professores da Rede Estadual de Ensino. A resposta dele sobre o voto aprovado quase por unanimidade pelo CONSEP e a minha carta respondendo o seu destempero chamando-me de “gaiato e de inútil como professor universitário” (apesar de me haver concedido o Mérito Educacional, em 1987), vistos nos Anexos, falam por si sobre esse assunto.
Como fecho deste artigo, farei um comentário e uma conjectura. O comentário é sobre o fato de alguns militares e civis, por ocasião da Ditadura Militar Brasileira, iniciada em 1964, terem prejudicado a vida (em alguns casos, acabaram com ela) de vários brasileiros, cujo único objetivo era o de lutar por um Brasil que respeitasse a dignidade do ser humano. A conjectura é a de que todos os meus cinco impedimentos de sair do país tiveram origem na minha prisão no CRUSP, em 1968, e que foi usada pelo Serviço Nacional de Informações, com informações oriundas de sua Agência em Belém do Pará.
SE A FLECHA DO TEMPO FOSSE INVERTIDA, NÃO MUDARIA NADA DO QUE ESSAS PESSOAS DISSERAM QUE FIZ!
(Agradecimentos: Agradeço a Célia pela leitura crítica deste artigo, bem como aos meus netos Anna-Beatriz Bassalo Aflalo e Lucas de Melo Bassalo pelo escaneamento dos Anexos do Apêndice 1.)