O dia 17 de dezembro de 2008 marca a data dos 40 anos da invasão do Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo (CRUSP), em decorrência da edição do Ato Institucional Número 5 (AI-5), no dia 13 de dezembro, por parte do Movimento Militar de 1964, dia em que ocorreu a prisão dos moradores desse Conjunto (eu era um deles).
Neste artigo, vou registrar como vivenciei a data. Quando o AI-5 foi editado, em uma sexta-feira, dia 13 de dezembro de 1968, em conseqüência de um discurso proferido pelo então deputado federal Márcio Moreira Alves, encontrava-me em São Paulo fazendo o Mestrado em Física, no então Departamento de Física da Universidade de São Paulo (DF/USP). Como estava sem a minha família, morava no Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo (CRUSP), no Bloco F, apartamento 505, juntamente com o paraense (também estudante de Física) Marcelo Otávio Caminha Gomes e mais um engenheiro mecânico, o Maurízio Ferrante.
Para festejar essa data, na madrugada do dia 14 de dezembro, o Comando de Caça aos Comunistas (CCC) metralhou o CRUSP, de um local perto do Instituto Butantã. Essa residência estudantil era composta de um conjunto de sete prédios (denominados de A, B, C, D, E, F, e G), com seis pavimentos e assentes sob pilotis (colunas), sendo 11 apartamentos por andar que davam para um corredor. Morávamos no F, conforme disse, que era destinado aos alunos que estavam fazendo pós-graduação na USP. Esses blocos tinham suas fachadas voltadas para o rio Pinheiros, e foram construídos de forma alternada, sendo o F o penúltimo prédio, próximo ao Restaurante Universitário, mais próximo do Instituto Butantã. Em vista da situação geográfica, o Bloco F foi metralhado pelo Comando de Caça aos Comunistas (CCC). Felizmente não houve nenhum acidente pois, sabedores de uma possível represália por parte do CCC (que já havia destruído a peça de Chico Buarque, Roda Viva), dormíamos no chão dos quartos, sendo os colchões colocados nas paredes, para evitar balas. Mesmo assim, quase uma dessas balas mata um colega nosso, que morava no 507, já que se encontrava nos sanitários, e sentiu um “vento mortífero’’ passar a um palmo de sua cabeça. Não satisfeitos com essa atitude criminosa, o CCC voltou a metralhar o CRUSP, no domingo dia 15, à noite, desta vez pela parte da frente, atingindo o Bloco A, onde moravam apenas alunas. Novamente, por felicidade, não houve vítimas. Foi dessa maneira que uma parte ultra-reacionária da sociedade civil paulista festejou o AI-5. Porém, não ficou apenas nesse incidente a comemoração do Ato.
O poder político-militar instituído também fez sua celebração. Promoveu a invasão do CRUSP, na madrugada do dia 17 de dezembro, por tropas do II Exército e da Polícia Militar do Estado de São Paulo. Antes de prosseguir neste relato, quero responder a uma dúvida que certamente está passando na cabeça do leitor. Quase no final de dezembro, e depois de duas rajadas de metralhadora do CCC, porque continuei morando no CRUSP? Por que, em virtude do famoso maio de 1968, que começou na França e teve repercussão em todo o mundo, houve greve e o ano letivo foi prolongado. Assim, tinha uma prova final da disciplina Relatividade Restrita, com o professor Jayme Tiomno e seu assistente, o professor Mauro Sérgio Dorsa Cattani, no dia 16 de dezembro, véspera da referida invasão. Pois bem, essa prova foi realizada à tarde. Assim, voltando para o nosso apartamento, depois do jantar, comecei a preparar os relatórios à Coordenação do Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e à Universidade Federal do Pará (UFPA), já que pretendia viajar para Belém, via Rio de Janeiro, no dia 21 de dezembro. Quando terminei de preparar os relatórios, cerca de duas horas da manhã do dia 17, fui à janela do apartamento para respirar aliviado e me deitar. No entanto, na janela, notei que o silêncio da madrugada tépida que cobria o CRUSP, estava sendo perturbado por um ruído estranho, como se um furtivo comboio de carros tivesse entrando no campus da USP. Como era de madrugada, tive de aguçar a visão para ver que tipo de barulho era aquele. Qual a minha surpresa quando percebi que se tratava de tanques do Exército, cerca de 17 unidades, conforme verificamos mais tarde. Imediatamente acordei o Marcelo e o Maurízio, para ver o que estava acontecendo. De pronto, subi ao apartamento 611, para falar com o cearense Newton Theophilo de Oliveira, meu grande amigo e colega de estudos. Juntos, e apavorados, ficamos esperando o que ia acontecer.
Cerca de seis horas da manhã, o comandante da operação-invasão, um oficial-general do Exército, vestido com uniforme de campanha, ordenava aos cruspianos, através de um megafone, que descessem dos apartamentos, apenas com a roupa que estivessem usando. Desse modo, ficamos horas sob os pilotis do prédio, aguardando que fosse feita a revista-cívica no CRUSP. Ela foi feita, prédio por prédio, andar por andar, apartamento por apartamento, por um sargento e um oficial, ambos do Exército. Sobre essa revista, há fatos curiosos a registrar. Por exemplo: na época, a Revista Realidade havia feito uma matéria com o grande líder comunista brasileiro Luís Carlos Prestes, cuja fotografia havia sido capa dessa Revista. Pois bem, logo que o oficial entrava em cada apartamento, junto à porta de cada apartamento, essa Revista era automaticamente confiscada, e entregue ao sargento que a colocava no corredor, junto à porta de cada apartamento, como uma prova de suposto crime de lesa-pátria. Além do mais, de acordo com o critério do oficial-censor, haveria um novo confisco de supostas outras provas. Em nosso apartamento, na sala de estudos, eu possuía uma pequena biblioteca. Nesta, lembro-me bem, tinha a coleção The Feynman Lectures on Physics, composta de três volumes, editada pela Addison Wesley Corporation, dos Estados Unidos, e de cor vermelha. Além dela possuía, também, uma coleção de Física Teórica, do Landau e Lifchtiz, composta de seis volumes, editados em Moscou, de sobrecapa vermelha, porém, com o dorso preto. Pois bem, o oficial, ao ver os livros, comentou: É, parece que aqui se estuda. Eu repliquei: Sim, porque todos somos professores. No entanto, apesar desse pequeno diálogo, ele viu os livros do Feynman, pediu-me que os tirasse da estante, e devido a sua cor vermelha, indagou-me sobre a sua “periculosidade’’. Quando disse ao capitão que era um livro americano, respirou aliviado. Por felicidade minha, e por ignorância (em assuntos de Física) do censor, ele passou pela coleção do Landau-Lifchtiz, e não disse nada. O dorso preto do livro evitou que eu fosse considerado “agente do ouro de Moscou’’.
Ainda com relação a essa revista-humilhação, há mais alguns fatos curiosos a registrar. Terminada a mesma, o suposto material subversivo era anotado e levado para o hall de entrada de cada prédio. No monte de meu prédio, vi o livro O Vermelho e o Negro, do escritor francês Stendhal (escrito em 1830, e versando sobre a queda do Imperador Napoleão e a restauração dos Bourbons), confiscado como um livro subversivo. Vi, também, o sargento-relator ficar abismado com o monte do famoso poster do Che Guevara, com o boné e a estrela solitária, poster que ele havia recolhido de cada apartamento. Recordo-me de sua frase: Vocês gostam `paca’ deste um.
Concluída a famigerada revista-moralista (meses depois, houve uma exposição na Avenida Paulista sobre o que haviam encontrado no CRUSP, com ênfase para os preservativos recolhidos, e um relógio-despertador considerado como uma bomba-relógio) em todo o CRUSP, por volta de três horas da tarde, ficamos presos sob os pilotis de cada prédio, rodeados por policiais-militares que usavam cães amestrados para nos manter em forma, além de simular fuzilamento, toda a vez que o grupo cantava o hino da Internacional Socialista.
Não conformados com a humilhação de sermos revistados, com fome, com apenas a roupa do corpo, e sem saber o nosso destino, os invasores resolveram nos humilhar mais ainda. Depois de requisitarem ônibus da então Companhia Metropolitana de Transportes Coletivos (CMTC), que faziam linha para o campus da USP, fomos levados para a Prisão Tiradentes. Chegando naquela prisão, fomos saudados pelas prostitutas paulistas que foram soltas, para que houvesse lugares para colocar as cruspianas. Estas se revoltaram e disseram que não entrariam nas celas. Depois de algum tempo de negociação, foram soltas. Porém, nós, os cruspianos, ficamos presos. Como éramos cerca de mil, foi feita uma relação de todos. Cada um de nós dava nome e endereço e depois, subia para as celas. Contudo, eu, Marcelo Gomes, Jayme Warzawski e mais alguns pós-graduandos, deixamos para dar nossos nomes, apenas no final. Depois de fichados (sem, contudo, sermos fotografados e nem registradas nossas impressões digitais), cerca de dez horas da noite, quando íamos subir para a cela, veio um delegado, com uma lista na mão, e começou a ler alguns nomes, que seriam soltos. Que alívio, quando ouvi meu nome, assim como o do Marcelo e do Jayme, dentre outros. Essa ordem de soltura decorreu do fato de que o professor Tiomno foi ao então Reitor da USP, professor Hélio Lourenço de Oliveira, dizer-lhe que precisava fazer alguma coisa, pois haviam sido presos alunos de pós-graduação, que, contudo, eram professores de outras universidades, como, por exemplo, o meu caso. Então, esse professor foi ao comandante do II Exército com uma lista de pós-graduandos, que moram no CRUSP. Desse modo, fomos soltos.
Apesar de soltos (eu, Marcelo e Jayme), restava uma questão. Para onde ir, cerca de onze horas da noite, já que não podíamos voltar para o CRUSP que estava ocupado militarmente? Pegamos um táxi e fomos para a casa do professor Tiomno, que morava na rua Maria Figueiredo, no Bairro do Paraíso. Em lá chegando, cerca de meia-noite, cansados, sujos e famintos, a professora Elisa, esposa do professor Tiomno, tratou-nos como uma verdadeira mãe. Enquanto tomávamos banho, ela preparou um excelente jantar, com frango e macarrão, um bom vinho e uma sobremesa de pêssegos em calda. Dormimos com pijamas do professor Tiomno.
No dia seguinte, fui com esse professor ao meu apartamento no CRUSP para pegar as minhas coisas pessoais. Acompanhados de um oficial do Exército, ele só me deixou apanhar as minhas roupas, ficando lá todos os meus livros. Mais tarde, um amigo meu, o matemático paraense José Miguel Martins Veloso, atualmente professor da UFPA, retirou o que restou de meus livros e os guardou consigo.
Nessa altura, cremos ser necessário dar uma explicação da razão pela qual o CRUSP foi metralhado pelo CCC, bem como foi invadido pelos militares. O CRUSP era considerado um território livre para os que queriam lutar contra o regime de exceção que havia se implantado no Brasil, a partir de 1964. Desse modo, para lá iam se homiziar os líderes estudantis brasileiros, tais como Wladimir Palmeira, Luiz Travassos (este, morto posteriormente em circunstâncias estranhas no Rio de Janeiro, vítima de um atropelamento), presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), e José Dirceu, líder dos estudantes secundários paulistas. Assim, em agosto de 1968, o CRUSP recebeu a visita de uma viatura (camburão) do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), cerca de seis horas da manhã. Um delegado se apresentou para prender alguns daqueles líderes. Então, os cruspianos prenderam-no no bloco G, e começaram a interrogá-lo. A viatura foi queimada em frente ao Restaurante Universitário. Como o delegado não voltou ao DOPS, esta foi avisada, certamente pelo motorista do camburão. Assim, por volta das sete horas da noite desse dia de agosto, o DOPS mandou um pelotão de policiais para libertar o delegado na “marra’’. Lembro-me que um cinegrafista de TV teve seu instrumento de trabalho quebrado por um violento golpe de coronha de fuzil.
Um outro fato que fez do CRUSP um objeto de repressão, foi o de que por ocasião do célebre XXX Congresso da UNE, em Ibiúna, em outubro de 1968, alguns participantes desse Congresso estiveram hospedados lá. Quando esse Congresso foi descoberto pelas forças militares de repressão, os jornais paulistas mostravam fotografias do evento, e nelas era fácil identificar os mantos de dormir que usávamos no CRUSP. Além do mais, houve a célebre refrega entre o CCC, que se encontrava na Universidade Mackenzie, situada na rua Maria Antônia, e os alunos de Filosofia da USP, que ficava também nessa rua, da qual resultou na morte do estudante secundarista José Guimarães.
A nossa prisão em São Paulo teve desdobramentos. Em virtude dela, fui impedido algumas vezes de sair do país para estudar fora do Brasil. Por exemplo, convidado para fazer o doutorado na França, em 1972, e com Bolsa de Estudos do então Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq), nunca o Ministério de Educação e Cultura (MEC) completou minha liberação para viajar, pois o Serviço Nacional de Informação (SNI) não deixava. Depois de me doutorar na USP, fui vítima da chamada cassação branca. Feito convite por instituição estrangeira, Bolsa do CNPq ou da CAPES, mas a mão invisível da Ditadura, manipulada pelo SNI, impedia que o MEC liberasse o candidato, apesar do aprovo do Ministro da Educação.
Por fim, quero advertir que esse meu depoimento, depois de 25 anos, não é uma “lambida de ferida’’ (que embora sarada, deixou seqüelas), e sim uma advertência para que os jovens não pensem que uma DITADURA é apenas uma figura de retórica. Durante a minha vida (nasci em 1935), estive sob o teto indireto e direto de duas: a de 1937 e 1964, respectivamente. Gostaria, portanto, de não vivenciar mais nenhuma, mesmo porque a História tem mostrado que elas não representam nenhuma solução. A DEMOCRACIA no Terceiro Mundo, mesmo com todos os problemas negativos que ela enseja, é melhor do que qualquer tipo de ditadura, quer seja de direita, quer seja de esquerda.
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